Friday, October 07, 2005

História Fabulosa II

Tinha pensado em milhares de coisas durante aquele tempo de preparação da viagem. Em tudo menos na própria viagem. E isso não era nada normal com este homem. Baralhado com estas novas estranhas sensações que o acometiam, a espaços cada vez mais regulares e cada vez mais intensos, quase não se preocupara com o planeamento das malas, com o seu ordenamento na bagageira, com a música a colocar no leitor, com o número de iogurtes, bebidas e comidas para a viagem, com sacos para enjôo... tudo isso estava enublado pelas imagens fraccionadas dos seus sonhos. Nunca havia sonhado antes. Pelo menos não com tanta frequência.
Quando se apercebeu destes factos, teve de se sentar. Por uma vez na vida, deixara a azáfama para a família. Eles que se preocupassem com o resto.
Enquanto o seu agregado voava por ele, lançando esporádicas censuras ou dúvidas ou esgares estranhos, afundava-se cada vez mais na recolecção dos seus pensamentos.
Sempre fora um tipo calculista. Passara a infância em recatado e escrupuloso construir de futuros para si. Escolhera aquele que achara melhor, como podia ter escolhido um qualquer outro. Ao que parece, sempre soubera os passos seguintes da sua vida. Sempre soubera, por um qualquer mistério existencial, aquilo que queria. E sempre o conseguira. Tinha-lhe sido dada essa oportunidade. Nem sequer se perguntara do que teria de sacrificar por a merecer.
Um observador externo da sua vida diria que o Acaso havia desistido de jogar com a vida deste homem, que lhe havia dado tréguas.
O observador estaria redondamente enganado. O Acaso nunca desiste. E nunca dá tréguas definitivas.

A última mala entrara, finalmente, no carro. Conseguiram sair da cidade com relativa facilidade. Apercebeu-se que os persistentes pensamentos permaneciam na sua mente. Como uma tatuagem. Como se alguém tivesse aberto uma porta no seu subconsciente. Uma porta que nunca suspeitara existir.

Carregou no acelerador, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Pela primeira vez, desejava a sensação de vertigem, de risco, de competição desenfreada com os outros. Os filhos e a mulher já não cantavam o Malhão. Ou qualquer outra canção infantil. Estavam de olhos esbugalhados, observando o ziguezaguear frenético por entre os carros, as buzinadelas, os insultos. Os putos sentiam-se excitados! Então era este o pai que não conheciam. Afinal de contas, estas férias prometiam.

Ao seu lado, a mulher sussurou

"-Querido, estás bem? Queres que conduza?"

Olhou para ela com um esgar Jack Nicholsoniano

"-Estou óptimo!"

O ponteiro indicava agora 200 quilómetros à hora.

(cont.)

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

oh meu, o pé tatuado é ligeiramente piroso... que tal só escreveres e cagares nas imagens que apanhas na net?

11:07 AM  
Blogger Titá said...

E mais?''''?????

1:48 PM  

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